11/09/06

voz



confesso. fui eu que te liguei meu amor. só para ouvir a tua voz. como quem rouba um búzio. e põe-se à escuta. o mar vai e vem. cantata matinal. não. não foi nenhuma cilada. não te liguei. como tantos outros já o fizeram. para te deixar confusa. amedrontrada. liguei-te. por recomendação médica. sempre que o dia tinja as suas horas. de tristeza. ligue a uma voz. não a uma voz qualquer. tem de ser um timbre amendoado. uma tonalidade que arrepie. hálito de fonte. tiras de seda à roda do pescoço. aconselhou-me o médico. com uma voz assim. pode reduzir à dose. serenou-me o doutor. cumpri à risca a prescrição. o médico só não sabe. que a tua voz. tem efeitos secundários. graves. e logo agora. que estava a largar os barbitúricos. ficar agarrado a uma voz. a tua. que é uma pedrada de rosas. um atordoamento. por isso. meu amor. hoje não resisti. fui a correr buscar o gravador. e sempre em ON. registei todos os teus: tá là. quem fala? ai este quem fala! água de nascente. e. quando. já um pouco exaltada. atiras-me: quem é que está a gozar comigo. desse lado? apeteceu-me responder: sou eu meu amor. o viciado. o voz dependente. diz mais alguma coisa. uma palavra. e a minha alma. será salva. rogar-te. em jeito de oração. tu. cansada de tanto silêncio. perdeste as estribeiras. badamerda! e desligaste. ficou tudo gravado. o badamerda. e todos os quem fala? desculpa o abuso. mas. só assim. meu amor. posso atenuar a ressaca. e badamerda o doutor. que não tem que me impingir. uma rigída posologia. cá para mim. a voz. a tua. é para ser ingerida. às pazadas. pronto. só te volto a ligar. quando no gravador. a tua voz. já não soar. cristalina.

4 comentários:

Anónimo disse...

Esse médico não percebe nada, Alberto. Fosse eu, receitava-lhe essa voz que o traz cativo ad libitum... Acresce ainda que esse vício lhe sai mais em conta que os barbitúricos (mesmo os genéricos)!

Anónimo disse...

a tua voz é de pele de pêssego
quando me ligas
deixa-me ouvi-la até ao caroço
porque é ao telefone
que os teus olhos falam

francisco carvalho disse...

Espectacular.
Gostei muito, Serra.
Deste teu texto, íntimo e assim transmitido.
;)

Anónimo disse...

Foi a voz... realmente foi por ela que levantei o olhar para ver quem declamava o poema de Cesário Verde. que voz... entrou de mansinho até ao mais profundo da minha alma e lá ficou como inquilina e senhora...
é com a tua voz que acordo...
é com a tua voz que faço amor cada dia...
é com a tua voz que mato as saudades até ao proxima abraço
(amo a tua voz) bjs