22/08/06

senhorinha

senhorinha da silva custódio. senhorinha. está apresentada. quem é baptizado com um nome destes merecia melhor sorte. senhorinha. cruel diminutivo para quem nunca foi dama senhora menina debutante em salões de lustres. donzela de ouropel. madamezinha criada em alcova de ouro. senhora coquete vestidos de chita luvas de pelica. senhorinha é nome de mulher que nunca logrou honrar o nome. nasceu aos trambolhões. aos quatro perdeu a mãe e ficou com a irmã. porrada. aos vinte juntou-se. a um alcoólico. porrada. murros e pontapés. cabeça contra a parede. altas horas da noite. e ela sem dormir. porrada e mais porrada. música aos berros. a cabeça a estoirar. o filho esfaqueado à cabeceira. ela. um trapo atirado ao lixo. sempre a fugir. nervos destrambelhados. arrasta-se até ao Conde Ferreira. sempre a fugir senhor doutor. recorda-se de algum momento alegre? tudo negro senhor doutor. sempre a fugir. o companheiro finou-se. a família deixou-a. sempre a fugir. e a vizinhança a cochichar: lá vai a louca.encerra-se no quarto minúsculo. quer dormir até morrer. e nunca corta os pulsos. esgadanha-se pelas paredes. cobre-se de frio. e não ingere barbitúricos. se morrer que seja de olhos bem abertos. a cabeça a zumbir. e não dorme. quer atravessar a passadeira. cai. de novo no hospital. senhor doutor estou a enlouquecer. sempre a fugir. só porrada. dê-me alguma coisa. não quero morrer assim. tratamentos. volta carregada de comprimidos. e não se mata. prefere esganar o mal alojado no cérebro. a reforma de mulher a dias some-se na farmácia. mata a fome com migalhas. não dorme. vive aparafusada à solidão extrema. um dia. um dia. um grupo de jovens que faz rondas para combater a solidão entra na casa da senhorinha. chovia lá dentro. barraco apagado no fim da ilha. no porto. aqui tão perto. foi sempre a fugir meninos. quer ajuda senhorinha? só se for carinho. companhia. o resto cá me arranjo. estou a seguir a medicação à risca. sentem-se. os jovens consertam-lhe o casebre. flores pintadas nas paredes. ela. a senhorinha. sempre asseada. cabelo ralo de menino. à espera da ronda semanal. são os meus filhos. os meus meninos. mãos agarradas. trevo de mimos a germinar. abre um sorriso. ainda tem lágrimas para chorar num rosto de senhorinha. e uma certa comoção pequeno burguesa apodera-se de mim. passe para cá o seu bilhete de identidade. a partir de hoje chama-se A Grande Senhora da Silva Custódio. a senhorinha na soleira da porta. um fio de candeia a tremer no fundo dos olhos. diz: os meus meninos já me levaram a ver o pôr do sol. o primeiro da minha vida. só tenho cinquenta e seis anos. talvez um dia ainda vá a um bailarico.

7 comentários:

Anónimo disse...

Um bom texto quase com sotaque brasileiro.
:)

http://decaminho.blogspot.com/

isabel mendes ferreira disse...

excelente!





bem delineado...um prazer ler.

francisco carvalho disse...

comovente texto.
e comovido.

abraço.

Anónimo disse...

E com um significado especial para mim...uma das meninas...não é fardo nenhum...é escolha de vida...é sobretudo amar...vidas vazias de significado, mas cheias de sentido...Obrigado. Joana

alberto serra disse...

obrigado joana.este texto também te
pertence e a todos que me leram e deixaram sentidos rastos.mas tu joana senhorinha de aguda sensiblidade mereces toda a ternura
do mundo.a mesma ternura que derramas por onde passas.
obrigado

Anónimo disse...

obrigado...

pedro cruz disse...

senhor serra, obrigado por tão bem descreveres a passagem de um sofrimento a uma vida em que o sofrimento também lá está - mas combatido!
senhorinha, obrigado por nos chamar 'meus meninos'.
nossa senhorinha.
depois, há o senhor josé, que tira o boné e toca a concertina...
e tudo ponho no Senhor.