morrer é uma festa
hoje experimentei a morte. digo-vos. é um assombro. privar com ela. dizer-lhe. entre. faz-nos bem. a todos. tê-la entre nós. a ousadia deve-se a um velho amigo. (só um grande amigo é capaz de nos colocar na antecâmara da morte como se tivessemos à porta do paraíso). adiante. contou-me. ao telefone. como se trata a morte por tu. sem uma ponta de arrepio. encomenda-se o caixão. contrata-se três carpideiras. um anúncio no jornal. em letras garrafais. HOJE VOU MORRER. COMPAREÇA AO FUNERAL ÀS TANTAS HORAS. TRAGA UM AMIGO TAMBÉM. e o povo. com aquele seu instinto abutre. bondoso. pendura uma gravata preta. arregimenta umas quantas olheiras. e outras tantas ladaínhas. duas ou três lágrimas na lapela. dúzias de coroas. o esquife nos ombros de uns valentões. e aí vai o féretro. uma cidade inteira. em passos surdos. chora o falecido. coitado. era tão boa pessoa. até na hora da morte não se esqueceu. amigos e inimigos. prestam vassalagem. isto é que é um defunto a sério. não discrimina. não ajusta contas. mortos assim já não se fabricam. a banda à frente. heróis do mar. o hino do FCP. nobre povo este. que não falha um funeral. um casamento. o coveiro. músculos de halterofilista. cava a fissura. redonda. que o meu corpo é para o abaulado. entre cada pazada. sonoras assuadelas. rostos de chumbo. formam-se grupos. a hora do enterro. é a melhor. para a malta conspirar. contra o governo. contra o futebol. o vizinho. o patrão. o vestido da senhora. o fato do senhor. marcam-se encontros. com a amante. com o bate-chapas. fecham-se negócios. porque é que só nos vemos. nestas alturas. até ao próximo. beijinhos. desço à terra. em fato de treino. dedico esta vitória. ao meu querido clube. enterrado. até ao pescoço. atenção ao morto. vai falar. pela última vez. presume-se. regressam os lenços. para segurar. umas lágrimas. que ainda há gente. capaz. de chorar. a qualquer hora. o senhor abade. ensaia a última. benção. chega. o momento . levanto os olhos. arenosos. proclamo: foi preciso montar a tralha. de um funeral. para. finalmente. descobrir. que afinal existo. eu. que nunca soube. o que é o amor. o que é um beijo. prolongado. o que é amizade. ternura. um abraço. desinteressado. o que é um almoço farto. uma família. ter companhia. uma casa. o que é não ter um chavo. para. um pão. uma guloseima. uma pequena extravagância. eu que arrastei. a morte. todos. estes anos. e ninguém deu. por isso. percebo agora. encenar a morte aos oitenta. é uma festa. o dia mais feliz. da minha vida. é como. voltar. todo contente. ao principio. da infância. lá. onde. todos os sonhos. ainda são. possíveis.
*
(quadro de goya)
1 comentário:
planeio matar-me, meu amor.
a velha que mora no andar de cima tem o vento enjaulado no frigorífico e a conta da luz lá pousada. o calor contou os degraus e subverteu a física. subiu a descer.
o rapaz da drogaria veio hoje buscar os bicos do gás e nem sopa tenho para mastigar os pobres.
há a varanda e a ria e a geografia que o arquitecto soube enquadrar. mas sabes como tenho medo das alturas.
estive a ver o extracto da saudade e as folhas em branco que não vou rasgar.
não tenho ninguém a quem avisar. vou marcar a data do meu funeral. no domingo, à hora do chã.
escolhi um caixão já usado e na vala comum é mais barato.
vou usar ácido. fumo um cigarro e conto até dez. lembras-te? finjo que são os teus lábios e bebo devagar a tua boca.
quando morrer, quero ter um telhado e um sorriso abafado na casa principal.
ouve. não leves tulipas nem lágrimas. as flores crescem dentro de ti primavera encantada.
se vieres, traz-me uma quadra que diga gosto de ti.
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acreditas que a angústia entrou pela janela do meu quarto?
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