vinte anos

12/12/06

fim




o lenço rosa enxugou-me as lágrimas
o sudário dançou no abismo de nota desavinda
sentada ao piano
a morte demora-se
a melodia escorre em tabuínhas de linho
o fim é uma lágrima caída
no extremo do teclado
o gemido ainda manda
nas horas finitas








(fotografia de jc)

11/12/06

carta de inverno




até onde posso ir. meu amor. neste deserto frio. em que me deixaste. a soluçar. para o branco chumbo das nuvens? a chuva parou. logo após a tua despedida. e nem houve tempo. para eu aprovisionar. um cântaro de água dos teus olhos. a súbita carga. de sol. que se abateu. sobre os meus braços. impediu também que deslocasse. para a sombra. o vapor de água. que se avolumou. nas paredes. à medida. que os nossos lábios. iam enrolando. no escuro. suaves teias. consolado. pelo teu ameno. encolher de ombros. não me atrevi. a procurar-te. nem a registar. o número de polícia da tua porta. tínhamos combinado. vagamente. trocar cartas. sem endereço. nem remetente. confiávamos no apurado olfacto. do carteiro. e chegamos a imaginar. lembras-te meu amor?. um modo pouco ortodoxo. de nos correspondermos. envelopes brancos. selados com duas três sementes de gardénias. o carteiro. dizias tu. há-de encontrar a morada. pelo cheiro. mas. tudo isto foi pensado. antes do teu inesperado. desaparecimento. nesta altura. estarás refugiada. num condominio fechado. com piscina aquecida. ou. quem sabe? numa dessas casas rústicas. a rebolar gemidos. enquanto os pássaros aninham. eu. aqui. continuo à janela. assistindo. incrédulo. ao vai e vem rotineiro. de asseados automóveis. queimando combustível. em passeios tristes. desculpa-me. meu amor. sei que estou a violar. um compromisso sagrado. mas esta carta. leva destinatário. o sol de inverno. já anda por aí a mendigar neve. pelos montes. e antes que tudo se torne indistinto. no horizonte. peço-te que me envies uma lágrima. em carta registada. pode te parecer. uma extravagância. mas não. é apenas uma declaração de saudade. que depositarei. no cimo do monte. com um brinco de pérola. dos teus olhos.






(fotografia de augusto peixoto)

10/12/06

a sinfonia pastoral







"...quantas vezes, desde a infância, não somos impedidos de fazer uma coisa ou outra que gostaríamos tanto de fazer, simplesmente por ouvirmos dizer à nossa volta: "ele não poderá fazê-lo"...como seriam felizes os homens, se pudessem ignorar
o mal...o que é o pecado? é aquilo que atenta à felicidade de outrem ou aquilo que compromete a nossa própria felicidade?...
as leis da natureza permitem o que as leis dos homens e de Deus proíbem..."




A Sinfonia Pastoral
de André Gide
edições Ambar




(quadro de picasso)

09/12/06

dor



dor. cão traiçoeiro. que não conhece o dono. dor. mina cobarde. que deflagra. em pleno sonho. quando entrou. para a sala de operações. ele nem teve tempo. de perguntar ao cirurgião: quanto tempo dói. curar uma ferida. a anestesia. roubou-lhe a pergunta. e o medo. quando voltou a si. não imaginava que mãos audaciosas. lhe tinham sondado as entranhas. durante umas horas. é como dividir o corpo. em gomos. sem darmos por nada. e pronto. acordamos numa qualquer cama de hospital. a consciência. conservada em formol. a dor. essa senhora. despeitada. chega depois. em alfinetadas cirúrgicas. para nos tirar. o sono. e. em calculadas investidas. sonegar o descanso. gelar o sorriso. se soubesse. que a dor. era. assim. tão matreira. e ciúmenta. matrona ociosa. tinha pedido ao médico. antes da operação. senhor doutor: anestesie-me de palavras e alguns sentimentos. quando acordar. quero ser lido. e não mordido. quando voltar a mim. quero chorar saudade. não quero chorar dor. quero ser ferido.de amor. " ferida que arde. sem se ver".




(quadro de frida kahlo)

08/12/06

coincidência


uma vez, na rua, cruzei-me com um apanhador de conchas. tinha os olhos feridos pelo sal, as mãos abertas pelo ácido das marés os lábios gretados por versos inacabados. recitou-me fórmulas do campo; anunciou-me a verdade de antigas profecias. olhei para cima: e o céu continuava azul, como se nada se passasse. mas ele abriu o cesto das conchas; e um movimento de caranguejos mostrou-me o fundo da existência. talvez eu estivesse a falar com um morto; ou as suas palavras me distraíssem do verdadeiro significado das coisas."para que serve a poesia, afinal"? e continuou o seu caminho, para que eu seguisse o meu, como se nunca nos tivéssemos encontrado.




Nuno Júdice, último livro "As coisas mais simples"
edições Dom Quixote




(fotografia de autor desconhecido)

07/12/06


quero
escrever-me de homens
quero
calçar-me de terra
quero ser
a estrada marinha
que prossegue depois do último caminho


e quando ficar sem mim
não terei escrito
senão por vós
irmãos de um sonho
por vós
que não sereis derrotados



deixo
a paciência dos rios
a idade dos livros


mas não lego
mapa nem bússola
por que andei sempre
sobre meus pés

e doeu-me
às vezes
viver


hei-de inventar
um verso que vos faça justiça



por ora
basta-me o arco-íris


em que vos sonho
basta-te saber que morreis demasiado
por viverdes de menos
mas que permaneceis sem preço


companheiros









(poema de mia couto, fotografias de rudolfo elias)

06/12/06




experimenta. meu amor. esmagar o meu nome. no almofariz onde gesto e fotografia. são fundidos. em solução de um adeus aquoso. experimenta. e verás que o objecto fotografado. nunca se resigna. palavra que invoca imagem. exige não ser esquecida. mesmo no nosso combinado desencontro. nenhuma tempestade . é capaz de dissolver os contornos da paisagem. que dão nome aos versos. pelo esmagamento do meu nome. sou ainda capaz de nomear o teu. na fotografia. que mais amo.






(fotografia de steve hanks)

05/12/06





hoje. escrevo-te à hora do pão quente. ainda com o sabor nocturno. do teu corpo. ontem á noite. a língua rodava. fina agulha de flor sobre os teus seios de massa tenra. escrevo-te. a boca besuntada de farinha. a trincar framboesas nas tuas coxas. anda tudo trocado. meu amor. dás-me a provar frutos. no teu corpo . à hora do jantar. e já não tenho compotas. chã de ervas. com que possa. matar a fome. de ti. se a esta hora. do pão quente. alcançasse a temperatura da noite.a minha primeira refeição. eram.maçâs.rosadas.pelos teus lábios.



(quadro de picasso)

03/12/06

a insustentável leveza da palavra


quando as palavras já não sustentam. o peso de um sentimento que ocultamos. com um medo aterrador. de nos tornarmos. emigrantes ilegais. num coração naturalizado. há muito. na pátria da fidelidade. elas. as palavras. servem apenas. para preencher. o espaço vazio. em que inventamos. um quintal semeado de nada. e nada é mais brutal. que a sensação de manusearmos. o abandono. convencidos. que estamos em perfeita comunhão com um corpo. sedento de amor. no jogo de enganos. a palavra. é uma muleta carunchosa. pobre do escritor que se atreve. a descrever como erótico. aquele instante. em que uma mulher. sentada ao nosso lado. quase ausente. finge uma terna quietude. como quem assiste. no escuro do teatro. à estreia de uma carícia.




(fotografia de carla salgueiro)

01/12/06

embarque



antes do regresso
sob um tecto de zinco
avia um adeus atabalhoado
despejando no chão varrido
da sala de embarque
o cheiro do mato
sementes das rubras acácias
o pó da terra bravia
trilhos selvagens.

carvão em chamas
na fogueira dos teus olhos.
será que é ainda brasa?
a inesperada turbulência
de um beijo neste corpo
amarrotado em poços de ar.

não sei meu amor
se ainda me esperas.
com aquela desorientada
vontade: abraços tresloucados
lágrimas e tremores
lábios esbanjadores
pétalas de orvalho
que florescem na raíz dos poros.
esperas-me? no balcão
em que se identificam
desesperados passageiros
perdidos de amor?




(fotografia de joão mota da costa)

30/11/06




vinte anos é uma curva sobre os livros a vida os filhos a ironia e a ternura







(fotografia de joão castela cravo)

naquela hora das cinco


naquela hora das cinco. meu amor. as acácias vermelhas. com o seu morno perfume. polinizavam o ar. e as cigarras. congregavam. o canto. para a larga sombra do imbondeiro. a minha. e a tua. pele. raízes.
da mesma árvore. costuravam uma imensa copa de lágrimas. um Deus africano. presidia à cerimonia. naquela hora das cinco. em que todas as aves. sossegam. e a saudade. recolhe ao casulo. para que. um destes dias. depois do último subscristo. abrirmos. na outra. margem do mundo. a arca dos prazeres.



(fotografia de lilya corneli)

29/11/06

beijo de mulato


se nenhum ganso selvagem. me sequestrar. nesta terra inchada de firmamento e luz. onde me sento à sombra da árvore da fortuna. a maforreira.prometo. que te levarei uma flor. beijo de mulato. assim se chama. para que a plantes. no teu quintal. o amor. aqui. é uma oração vespertina. em chão de areia. selvagem refrega. povoada de garças negras. o pecado. um estranho vocábulo. veneno estrangeiro. que os espíritos. expulsam do sangue. a árvore de sândalo. vai desenrolando. a esteira. e um dia. os nossos corpos. rebolando no verde capim. hão-de provar. o tamarino. fruto.que injecta sumo. ao desejo.



(quadro de picasso)

28/11/06




fosse eu
um envelope fechado
na tua mão
derretias o lacre
na tua boca rastilho?

fosse eu
um telegrama perdido
no fundo dos teus olhos
escrevias-me
com tua pele furta-cores?

fosse eu
um começo de poema
na tua carne
enrolavas-me
na tua língua ametista?

fosse eu
uma encomenda
devolvida ao frio
aquecias-me nos teus
joelhos cartomante?




(fotografia de alba luna)

26/11/06











Lembra-te
que todos os momentos
que nos coroaram
todas as estradas
radiosas que abrimos
irão achando sem fim
seu ansioso lugar
seu botão de florir
o horizonte
e que dessa procura
extenuante e precisa
não teremos sinal
senão o de saber
que irá por onde fomos
um para o outro
vividos




Mário Cesariny


9 de agosto de 1923 - 26 de Novembro de 2006




25/11/06


a caliça desmorona-se
no tempo brusco
corpos desassossegados
murais do desejo
inscritos à porta de casa
o vento detem-se à janela
o sol é uma labareda
que sobe do lambril
a hora da troca
nunca é pontual
o prazer desabrigado
não consta na lista
da refeição encomendada
por ser tão incerto
e desejado
o corpo não cabe
na sala de visitas



(fotografia de augusto peixoto)

23/11/06

waiting for europe










Conforme solicitado pela Dr.a Gisela Cunha da C.R.I.M. Produções, o que muito agradeço, sou a divulgar o debate sobre o Filme "Waiting for Europe", sobre o qual me foi remetido por mail os seguintes elementos:

Argumento e Realização: Christine Reeh

Produção: Isabel Machado

Produção Executiva: José João Louro

Director de Fotografia: Daniel Neves

Música Original: Christoph Korn

Montagem: Christine Reeh e José Manuel Fernandes

Sinopse

A jovem Vânia veio da Bulgária para viver em Portugal à procura da sua independência e de realizar o sonho de uma vida melhor. Passa por medos e esperanças, enquanto tenta encontrar respostas para as grandes decisões da vida. Quando começa a viver em Espanha apercebe-se de repente do seu isolamento e que se encontra num ciclo típico de dependência. Este filme é sobre a emigração de uma perspectiva feminina. É sobre crescer e adiar a vida … enquanto se espera que um dia as utopias da Europa se realizem.


Nota de Intenções

Tentei formalizar o que a Vânia era para mim: uma sonhadora decepcionada? Uma explorada por ser mulher? Uma vítima do machismo crescente? Isolada por ser imigrante da Europa do Leste? Um espelho de mim própria por ser estrangeira, embora de contextos opostos? Quem é Vânia? Vamos ver a história dela, o que ela me contou, o que eu imaginei e o que construí sobre ela…


Biografia da Realizadora


Nasceu na Alemanha e vive em Portugal há 10 anos. Estudou montagem e realização na Escola Superior de Teatro e Cinema em Lisboa e termina a sua tese de mestrado em Estética e Filosofia da Arte “Da Irrealidade do Mundo à Realidade do Cinema” na Faculdade de Letras de Lisboa. Fundou com Isabel Machado o Agrupamento Europeu Asterisk Productions e a empresa C.R.I.M. Produções Audiovisuais.
Christine Reeh aposta em documentários baseados em personagens fortes. Trata essas personagens quase como actores e reencena a realidade, trabalhando com luzes, enquadramentos e movimentos planificados. Desta forma os seus documentários estão cada vez mais perto da ficção.

Produtora: C.R.I.M. Produções Audiovisuais

A empresa (anteriormente com o nome Asterisk Produções) foi fundada no final de 2002 com o objectivo de realizar projectos artísticos e produzir filmes que se destacam pela dinamização de ideias, relevância cultural, potencial de reflexão e impacto social e pela sinergia entre arte, design, cinema, filosofia, documentário e ficção. Queremos mudar o Mundo!

Waiting for Europe Filme Documentário de Christine Reeh, HDV, 50 min, 2006
Produção apoiada pelo ICAM e RTP.

*

(na foto: Luís Diamantino, Inês Fontinha, Alberto Serra e Christine Reeh)






a caminho do mato


vou a caminho do mato. onde o sol. é um sobressalto de humidade. que lubrifica a savana. anuncio-te. que me matriculei na escola do instinto. porque no regresso. não quero faltar à aula. em que costumamos polemizar sobre a paixão de contentor. chegarei. besuntado de luar. os lábios amarrados a fios de manga. porque. não quero levar para a cama. um corpo enfrascado de perfume rasca. nem um fato janota de cavalheiro abrutalhado. na fila do chek-in. o que tem de excêntrico. de indestronável. de caos. de aviamento erótico. a natureza. vai na bagagem de mão. para que. logo á chegada. sintas. o que é a chuva de áfrica. a estalar-te. nos seios. o que é o amor? o sexo? meu amor. um raio súbito? uma batuta invísivel? a reger dois corpos. desconcertados. o que é o amor. senão. o regresso à selva. um mergulho cego. no pântano. por aqui se diz:Mar. nome de mulher.






(fotografia de marta laura)

22/11/06

manual de viagem



não li. mas contaram-me. havia um manual. que os viajantes acorrentavam à mochila.
bússula de cartão amarelecido.

para os que à hora da trasfega. se cansam. de tanta lonjura. e romanceiam pelos arredores do mundo. o que deixaram a transbordar. no longínquo depósito. onde a saudade fica a estrebuchar.

pode ser. meu amor. que pela corrente do índico. um velho relógio. chegue a tempo. para retardar. o ímpeto cego.

lágrima. que embarca sem visto de residência.








(fotografia de graça)

da ausência






às vezes. as palavras aguardam na eira. um sol brusco. ou o sopro de engenhosas mãos. as palavras pedem: quero amadurecer por dentro dos significados. e recusam-se a sair à rua. encolhem-se na manta. metem folga. esperam o sereno dilúvio. o vento que do sangue expulsa frases combustíveis. as palavras. mesmo cansadas. de tanta fadiga feliz. não suportam o escuro. e socorrem-se de velhas palavras amigas. e sangram o vermelho adiado. e vêem à boca de cena. e beijam. porque as palavras. só mostram o seu nervo. a sua voz. porque há uma mão feiticeira. que para elas inventa. um alpendre de cores. porque as palavras. são os frutos dessa feiticeira.


*

(fotografia de sweetcharade)

21/11/06

o animal moribundo




A grande partida biológica que nos pregam é que nos tornamos íntimos
antes de sabermos alguma coisa
acerca da outra pessoa...






in O Animal Moribundo
de Philip Roth
edição Dom Quixote





(quadro de paula rego)


20/11/06

anjo camponês




estava a um metro de distância. fixou o olhar. e. com desvelos de engomadeira. passou a ferro o impulso. ele. encerrou a tentação nos joelhos cruzados. estendeu a mão à chuva. disse: agora que as nossas orações. são mais que piedosos juramentos. façamos do palmo de couro que nos separa. um altar pagão. uma divisória de bambú. que caia. um anjo camponês. e. entre nós. apronte uma horta. onde o amor. seja regulado pelo labor das estações. ela. imóvel. apenas concedia ao cabelo. um passeio matinal. pelas sobrancelhas. a chuva. o frio. o silêncio enganchado. em cada frase. pediam que se aproximassem. ele. ainda arriscou. ergueu um braço. os dedos a caminhar. pé. ante pé. só que. havia um juiz na sala. o anjo camponês. que sentenciou: deixem o sangue amainar. e a chuva. amolecer os liquenes. chegará o dia. da bonança. sol cavado. entre a vossa. nudez.


*

(fotografia de luís lobo henriques)

19/11/06

primeira namorada



jsvwuyfvck-v i2fqkjhhf. foi este o resultado. letras disparadas. ao acaso. num súbito ataque de nostagia. da tecla cantante. a velhinha máquina de escrever. meia emperrada. ventre descoberto. leque de metal. reclinado. fez-me a vontade: dedos a correr. pelo alfabeto AZERT. as teclas a ribombar. aquelas letras embutidas na página. aquela banda sonora. escrever-te. assim. à antiga. o asséptico. o silencioso. o obediente. o veloz. o previsível computador. está desligado. hoje. escrevo-te com letras de ferrugem. tinta a escorrer. em alças de ferro. é para que saibas. este corpo rijo. adelgaçado. nas ancas. os acentos. em voo circular. múltiplos abraços. foi a minha primeira namorada. dócil às vezes. caprichosa muitas. mas nunca craxou. nunca me deixou ficar mal. mesmo no instante mais febril. quando calcava a tecla A. de amor. delete algum. apagava o beijo apressado. no papel. linguado. chamava-se. a cada folha. saciada. de parágrafos. firmes e elegantes. como o teu corpo. que não posso tocar. mas que podia. ser. agora. o rolo macio. onde acariciei. muitas cartas. como esta. que iniciei. na velhinha. máquina de escrever.


*

(fotografia de carlos neto)

18/11/06

caderno de sobras










há lume apagado em tudo o que escreves. e. no entanto. em certas noites frias. procuras. no caderno de sobras. o traço envelhecido. das muitas viagens. que nunca descolaram do esboço. há. sim. tímidos parágrafos. frases incolores. pensamentos escoltados. escreves medos. em letras minúsculas. porque. o vocabulário do desejo. é vasto. impronunciável. e os teus seios. acantonados. entre parêntesis. estão guardados. para o orgasmo. maiúsculo.


*



(fotografias de autor desconhecido)

17/11/06

nasce agora



nasce agora. meu amor. absorve o hálito. de tudo o que é começo. a primeira ranhura. do ar. a primeiro desfalecimento. do olhar. o novelo da chuva. o sangrar. das fontes. grava. no cordão umbilical. as iniciais do meu nome. o mesmo tipo de letra. do cinto que compraste. para me trazeres afivelada a ti. vem para a rua. perde-te. diz-me que não consegues governar as mãos. ignora as fronteiras. do razoável. faz de conta. que ainda não aprendeste a viver. a desilusão. a tristeza. marca comigo. o encontro inicial. sente como é. o estalar do sangue no rosto. o que é não saber. pronunciar ainda: gosto-te. dá-me. a provar o suor dos ombros. antes de nomeares o que quer que seja. deixa as lágrimas despenharem-se. chora. o alegre arrepio. o meu corpo. o teu corpo. ainda estão. por desalfandegar. entregamo-nos. no porão escuro. à festa tribal.ao contrabando das carícias. no alto mar. onde. ainda. não há leis. nem rótulos. que restrinjam. o desembarque. dos amantes. sem vínculo. nasce agora. meu amor. e. de olhos fechados. toca-me. antes que o conhecimento. envelheça o desejo.

*

(quadro de chagall)

15/11/06

fogo atiçado


a chuva
que dizes ser cega
impiedosa.
nada é
comparada
com o vendaval de meteoritos.
que me fulmina.
sempre
que passeias o olhar.
pela vidraça do café.
o empregado recolheu

cinco lágrimas tuas.
com artes de garimpeiro.
a partir daí.

descobri a cura
para minha encoberta cegueira.
vaguear de olhar raso.
(olhos no chão digo)
sempre que entrares.
ver-me parado
na tua retina
não é um acto de resistência
mas uma queda estrondosa
num poço de astros imortais.
teus olhos
fogo atiçado pela chuva.



(quadro de klimt)

contas saldadas


se
despertares
antes do sol.
lembra-te da
noite
em que
saldamos.
num só fôlego.
a dívida de
sangue.
que nossos
corpos.
caloteiros.
acumularam.
dias.
e. dias.




(fotografia de joão parassu)

14/11/06

rapto





moro aqui. no arco sombrio. da submissa página. monólogo arrastado. palavras exangues. fontes caladas. moro aqui. nesta fortaleza arruinada. olhos encastrados. entre o zumbido das vespas. e muitas cartas sem resposta. moro aqui. meu amor. nesta trincheira branca. fria. distante. imaginando. como podes tu. transpor o muro alto dos vocábulos. se já não existe. a janela. por onde tantas vezes. as tuas lágrimas escorriam. pedindo mais que um poema. moro aqui. emboscado. tentando salvar. uns remendos de saudade. às escuras. as mãos cansam. os olhos pesam. os joelhos vacilam. e mesmo. que eu quizesse gritar. tu já não me podes. acudir. as portas estão soldadas. brecha nenhuma. permitirá um beijo clandestino. um rosto anónimo. uma carícia expatriada. não me leias. meu amor. espera-me. na paragem do autocarro e rapta-me.


*

(quadro de salvador dali)

13/11/06

ofício de lua branca



tanta noite agrafada ao instinto
tanta dor segregada no tinto
tanto olhar parado no quinto.
por este andar
tantos os dias
tantas as horas
dementes melodias.
ofício de lua branca
cinzela vida no corpo
apara o deserto da estampa.
varre os despojos da campa.
anda.
dorme comigo na manta.



(fotografia de augusto peixoto)

12/11/06

a única excepção




se me abandonares por qualquer outro homem será duro admiti-lo, mas lá terei de
me resignar, aceitarei serenamente
a tua decisão. Eu não sou rancoroso.

se me abandonares por amor a alguma
região distante, é provável que me exalte,
que perca a cabeça; embora depois reconheça
que tens razão. Eu não sou rancoroso.

se me abandonares porque estás farta de mim, talvez me doa por dentro, na minha alma.
mas acabarei por superá-lo.
és livre. E eu não sou rancoroso.

mas escuta-me bem. Se me abandonares
por um vício como a Poesia
- esse outro mundo: estranho labirinto-
morreria depois de te ter matado.



(poema de Toni Montesinos, traduzido por Manuel de Freitas.
revista Telhados de Vidro, novembro 2005)





(quadro de canau espadinha)

11/11/06

enfarte literário



morrerei. por certo. de enfarte literário. dei-me conta. com o passar dos anos. que a palavra. embutida no rubro lampejar da paixão. é um factor de risco. coágulo letal. que um dia. cravará. fatalmente. uma comporta de aço. no sangue . "não há amor. só provas de amor". dizes-me. sempre que te escrevo. a paisagem que invento. para te ver. rosada e desprevenida. a colher flores azuis. na margem do rio. é afinal. um horizonte desossado. felicidade servida em cápsulas. que os médicos. costumam receitar. a doentes terminais. já não acreditas. eu sei. em quase nada do que escrevo. lembro-me. do bilhete que me deixaste na caixa do correio."em vez de me iludires com essa enxurada de frases feitas. porque não me dás o soro da terra. um colar de areia?" e agora mesmo. que me preparava para te enviar. mais uma acetinada. declaração de amor. apercebo-me. que tu. porque não apareço. porque não ligo. porque não respondo. acharás. ridículas. todas as tentivas. de ressuscitar. antigas vigílias. noites e noites. em que te entregavas. à penosa decifração. procurando. uma palavra que fosse. endereçada só a ti. sinto. meu amor. o corpo da escrita a mirrar. a ordem do médico de família. não podia. ser mais peremptória . "tensões altas. gordura em excesso. no sangue. coração. gangrenado de metáforas. interne-se urgentemente". não adianta. morrerei de enfarte literário.


*



(quadro "biblioteca" de helena vieira da silva)

08/11/06

citação, Ruben A




"dos 40 aos 50 limpa-se a casa, põem-se telhas onde faltam, instala-se um novo sistema sentimental e no jardim das delícias, no passeio depois do jantar, nas madrugadas sem Deus, ouvimos uma voz que nos buzina, que dali para a frente a contagem é outra..."

Ruben A





(quadro de cargaleiro)

07/11/06

um dia



auscultarei
o tronco
onde cintila
uma luz antiga.
ouvirei
todas as queixas
de um coração
magoado.
beijarei
aqueles olhinhos
cor de mel
como quem
se deita
na campina
a contar
astros
de
pergaminho.





(fotografia de le borgne)

06/11/06

pensa



pensa
na divisória de granizo
onde a chuva
amolece a fúria
pensa
nas folhas de outono
que suturam
calçadas feridas
pensa
no colapso das máquinas
pensa
no que te digo:
gosto do negro em ti.
pensa
no que me dizes:
gosto do teu sabor a vício.
mas tenho medo
de perder o endereço do amor.
pensa num instante parado
entra em mim
olhos brancos
água de lavanda
pensa
no foragido desejo
dinamitado pelo beijo.
pensa pensa
a minha cama
é uma praça escura
meus seios
candeeiros azuis
só tuas mãos
ladinas
sabem acender
o resto do meu corpo.
pensa.





(quadro de salvador dali)