vinte anos
12/12/06
11/12/06
carta de inverno
até onde posso ir. meu amor. neste deserto frio. em que me deixaste. a soluçar. para o branco chumbo das nuvens? a chuva parou. logo após a tua despedida. e nem houve tempo. para eu aprovisionar. um cântaro de água dos teus olhos. a súbita carga. de sol. que se abateu. sobre os meus braços. impediu também que deslocasse. para a sombra. o vapor de água. que se avolumou. nas paredes. à medida. que os nossos lábios. iam enrolando. no escuro. suaves teias. consolado. pelo teu ameno. encolher de ombros. não me atrevi. a procurar-te. nem a registar. o número de polícia da tua porta. tínhamos combinado. vagamente. trocar cartas. sem endereço. nem remetente. confiávamos no apurado olfacto. do carteiro. e chegamos a imaginar. lembras-te meu amor?. um modo pouco ortodoxo. de nos correspondermos. envelopes brancos. selados com duas três sementes de gardénias. o carteiro. dizias tu. há-de encontrar a morada. pelo cheiro. mas. tudo isto foi pensado. antes do teu inesperado. desaparecimento. nesta altura. estarás refugiada. num condominio fechado. com piscina aquecida. ou. quem sabe? numa dessas casas rústicas. a rebolar gemidos. enquanto os pássaros aninham. eu. aqui. continuo à janela. assistindo. incrédulo. ao vai e vem rotineiro. de asseados automóveis. queimando combustível. em passeios tristes. desculpa-me. meu amor. sei que estou a violar. um compromisso sagrado. mas esta carta. leva destinatário. o sol de inverno. já anda por aí a mendigar neve. pelos montes. e antes que tudo se torne indistinto. no horizonte. peço-te que me envies uma lágrima. em carta registada. pode te parecer. uma extravagância. mas não. é apenas uma declaração de saudade. que depositarei. no cimo do monte. com um brinco de pérola. dos teus olhos.
(fotografia de augusto peixoto)
escrito por alberto serra a 11.12.06
10/12/06
a sinfonia pastoral
"...quantas vezes, desde a infância, não somos impedidos de fazer uma coisa ou outra que gostaríamos tanto de fazer, simplesmente por ouvirmos dizer à nossa volta: "ele não poderá fazê-lo"...como seriam felizes os homens, se pudessem ignorar
o mal...o que é o pecado? é aquilo que atenta à felicidade de outrem ou aquilo que compromete a nossa própria felicidade?...
as leis da natureza permitem o que as leis dos homens e de Deus proíbem..."
A Sinfonia Pastoral
de André Gide
edições Ambar
escrito por alberto serra a 10.12.06
09/12/06
dor
(quadro de frida kahlo)
escrito por alberto serra a 9.12.06
08/12/06
coincidência
uma vez, na rua, cruzei-me com um apanhador de conchas. tinha os olhos feridos pelo sal, as mãos abertas pelo ácido das marés os lábios gretados por versos inacabados. recitou-me fórmulas do campo; anunciou-me a verdade de antigas profecias. olhei para cima: e o céu continuava azul, como se nada se passasse. mas ele abriu o cesto das conchas; e um movimento de caranguejos mostrou-me o fundo da existência. talvez eu estivesse a falar com um morto; ou as suas palavras me distraíssem do verdadeiro significado das coisas."para que serve a poesia, afinal"? e continuou o seu caminho, para que eu seguisse o meu, como se nunca nos tivéssemos encontrado.
Nuno Júdice, último livro "As coisas mais simples"
edições Dom Quixote
(fotografia de autor desconhecido)
escrito por alberto serra a 8.12.06
07/12/06
quero
escrever-me de homens
quero
calçar-me de terra
quero ser
a estrada marinha
que prossegue depois do último caminho
e quando ficar sem mim
não terei escrito
senão por vós
irmãos de um sonho
por vós
que não sereis derrotados
deixo
a paciência dos rios
a idade dos livros
mas não lego
mapa nem bússola
por que andei sempre
sobre meus pés
e doeu-me
às vezes
viver
um verso que vos faça justiça
por ora
basta-me o arco-íris
em que vos sonho
basta-te saber que morreis demasiado
por viverdes de menos
mas que permaneceis sem preço
companheiros
(poema de mia couto, fotografias de rudolfo elias)
escrito por alberto serra a 7.12.06
06/12/06
experimenta. meu amor. esmagar o meu nome. no almofariz onde gesto e fotografia. são fundidos. em solução de um adeus aquoso. experimenta. e verás que o objecto fotografado. nunca se resigna. palavra que invoca imagem. exige não ser esquecida. mesmo no nosso combinado desencontro. nenhuma tempestade . é capaz de dissolver os contornos da paisagem. que dão nome aos versos. pelo esmagamento do meu nome. sou ainda capaz de nomear o teu. na fotografia. que mais amo.
(fotografia de steve hanks)
escrito por alberto serra a 6.12.06
05/12/06
hoje. escrevo-te à hora do pão quente. ainda com o sabor nocturno. do teu corpo. ontem á noite. a língua rodava. fina agulha de flor sobre os teus seios de massa tenra. escrevo-te. a boca besuntada de farinha. a trincar framboesas nas tuas coxas. anda tudo trocado. meu amor. dás-me a provar frutos. no teu corpo . à hora do jantar. e já não tenho compotas. chã de ervas. com que possa. matar a fome. de ti. se a esta hora. do pão quente. alcançasse a temperatura da noite.a minha primeira refeição. eram.maçâs.rosadas.pelos teus lábios.
escrito por alberto serra a 5.12.06
03/12/06
a insustentável leveza da palavra
quando as palavras já não sustentam. o peso de um sentimento que ocultamos. com um medo aterrador. de nos tornarmos. emigrantes ilegais. num coração naturalizado. há muito. na pátria da fidelidade. elas. as palavras. servem apenas. para preencher. o espaço vazio. em que inventamos. um quintal semeado de nada. e nada é mais brutal. que a sensação de manusearmos. o abandono. convencidos. que estamos em perfeita comunhão com um corpo. sedento de amor. no jogo de enganos. a palavra. é uma muleta carunchosa. pobre do escritor que se atreve. a descrever como erótico. aquele instante. em que uma mulher. sentada ao nosso lado. quase ausente. finge uma terna quietude. como quem assiste. no escuro do teatro. à estreia de uma carícia.
(fotografia de carla salgueiro)
escrito por alberto serra a 3.12.06
01/12/06
embarque
antes do regresso
sob um tecto de zinco
avia um adeus atabalhoado
despejando no chão varrido
da sala de embarque
o cheiro do mato
sementes das rubras acácias
o pó da terra bravia
trilhos selvagens.
carvão em chamas
na fogueira dos teus olhos.
será que é ainda brasa?
a inesperada turbulência
de um beijo neste corpo
amarrotado em poços de ar.
não sei meu amor
se ainda me esperas.
com aquela desorientada
vontade: abraços tresloucados
lágrimas e tremores
lábios esbanjadores
pétalas de orvalho
que florescem na raíz dos poros.
esperas-me? no balcão
em que se identificam
desesperados passageiros
perdidos de amor?
escrito por alberto serra a 1.12.06
30/11/06
vinte anos é uma curva sobre os livros a vida os filhos a ironia e a ternura
(fotografia de joão castela cravo)
escrito por alberto serra a 30.11.06
naquela hora das cinco
naquela hora das cinco. meu amor. as acácias vermelhas. com o seu morno perfume. polinizavam o ar. e as cigarras. congregavam. o canto. para a larga sombra do imbondeiro. a minha. e a tua. pele. raízes.
da mesma árvore. costuravam uma imensa copa de lágrimas. um Deus africano. presidia à cerimonia. naquela hora das cinco. em que todas as aves. sossegam. e a saudade. recolhe ao casulo. para que. um destes dias. depois do último subscristo. abrirmos. na outra. margem do mundo. a arca dos prazeres.
(fotografia de lilya corneli)
escrito por alberto serra a 30.11.06
29/11/06
beijo de mulato
se nenhum ganso selvagem. me sequestrar. nesta terra inchada de firmamento e luz. onde me sento à sombra da árvore da fortuna. a maforreira.prometo. que te levarei uma flor. beijo de mulato. assim se chama. para que a plantes. no teu quintal. o amor. aqui. é uma oração vespertina. em chão de areia. selvagem refrega. povoada de garças negras. o pecado. um estranho vocábulo. veneno estrangeiro. que os espíritos. expulsam do sangue. a árvore de sândalo. vai desenrolando. a esteira. e um dia. os nossos corpos. rebolando no verde capim. hão-de provar. o tamarino. fruto.que injecta sumo. ao desejo.
(quadro de picasso)
escrito por alberto serra a 29.11.06
28/11/06
fosse eu
um envelope fechado
na tua mão
derretias o lacre
na tua boca rastilho?
fosse eu
um telegrama perdido
no fundo dos teus olhos
escrevias-me
com tua pele furta-cores?
fosse eu
um começo de poema
na tua carne
enrolavas-me
na tua língua ametista?
fosse eu
uma encomenda
devolvida ao frio
aquecias-me nos teus
joelhos cartomante?
(fotografia de alba luna)
escrito por alberto serra a 28.11.06
26/11/06
Lembra-te
que todos os momentos
que nos coroaram
todas as estradas
radiosas que abrimos
irão achando sem fim
seu ansioso lugar
seu botão de florir
o horizonte
e que dessa procura
extenuante e precisa
não teremos sinal
senão o de saber
que irá por onde fomos
um para o outro
vividos
Mário Cesariny
escrito por alberto serra a 26.11.06
25/11/06
a caliça desmorona-se
no tempo brusco
corpos desassossegados
murais do desejo
inscritos à porta de casa
o vento detem-se à janela
o sol é uma labareda
que sobe do lambril
a hora da troca
nunca é pontual
o prazer desabrigado
não consta na lista
da refeição encomendada
por ser tão incerto
e desejado
o corpo não cabe
na sala de visitas
(fotografia de augusto peixoto)
escrito por alberto serra a 25.11.06
23/11/06
waiting for europe
Conforme solicitado pela Dr.a Gisela Cunha da C.R.I.M. Produções, o que muito agradeço, sou a divulgar o debate sobre o Filme "Waiting for Europe", sobre o qual me foi remetido por mail os seguintes elementos:
Argumento e Realização: Christine Reeh
Produção: Isabel Machado
Produção Executiva: José João Louro
Director de Fotografia: Daniel Neves
Música Original: Christoph Korn
Montagem: Christine Reeh e José Manuel Fernandes
Sinopse
A jovem Vânia veio da Bulgária para viver em Portugal à procura da sua independência e de realizar o sonho de uma vida melhor. Passa por medos e esperanças, enquanto tenta encontrar respostas para as grandes decisões da vida. Quando começa a viver em Espanha apercebe-se de repente do seu isolamento e que se encontra num ciclo típico de dependência. Este filme é sobre a emigração de uma perspectiva feminina. É sobre crescer e adiar a vida … enquanto se espera que um dia as utopias da Europa se realizem.
Nota de Intenções
Tentei formalizar o que a Vânia era para mim: uma sonhadora decepcionada? Uma explorada por ser mulher? Uma vítima do machismo crescente? Isolada por ser imigrante da Europa do Leste? Um espelho de mim própria por ser estrangeira, embora de contextos opostos? Quem é Vânia? Vamos ver a história dela, o que ela me contou, o que eu imaginei e o que construí sobre ela…
Biografia da Realizadora
Nasceu na Alemanha e vive em Portugal há 10 anos. Estudou montagem e realização na Escola Superior de Teatro e Cinema em Lisboa e termina a sua tese de mestrado em Estética e Filosofia da Arte “Da Irrealidade do Mundo à Realidade do Cinema” na Faculdade de Letras de Lisboa. Fundou com Isabel Machado o Agrupamento Europeu Asterisk Productions e a empresa C.R.I.M. Produções Audiovisuais.
Christine Reeh aposta em documentários baseados em personagens fortes. Trata essas personagens quase como actores e reencena a realidade, trabalhando com luzes, enquadramentos e movimentos planificados. Desta forma os seus documentários estão cada vez mais perto da ficção.
Produtora: C.R.I.M. Produções Audiovisuais
A empresa (anteriormente com o nome Asterisk Produções) foi fundada no final de 2002 com o objectivo de realizar projectos artísticos e produzir filmes que se destacam pela dinamização de ideias, relevância cultural, potencial de reflexão e impacto social e pela sinergia entre arte, design, cinema, filosofia, documentário e ficção. Queremos mudar o Mundo!
Waiting for Europe Filme Documentário de Christine Reeh, HDV, 50 min, 2006
Produção apoiada pelo ICAM e RTP.
*
(na foto: Luís Diamantino, Inês Fontinha, Alberto Serra e Christine Reeh)
escrito por alberto serra a 23.11.06
a caminho do mato
vou a caminho do mato. onde o sol. é um sobressalto de humidade. que lubrifica a savana. anuncio-te. que me matriculei na escola do instinto. porque no regresso. não quero faltar à aula. em que costumamos polemizar sobre a paixão de contentor. chegarei. besuntado de luar. os lábios amarrados a fios de manga. porque. não quero levar para a cama. um corpo enfrascado de perfume rasca. nem um fato janota de cavalheiro abrutalhado. na fila do chek-in. o que tem de excêntrico. de indestronável. de caos. de aviamento erótico. a natureza. vai na bagagem de mão. para que. logo á chegada. sintas. o que é a chuva de áfrica. a estalar-te. nos seios. o que é o amor? o sexo? meu amor. um raio súbito? uma batuta invísivel? a reger dois corpos. desconcertados. o que é o amor. senão. o regresso à selva. um mergulho cego. no pântano. por aqui se diz:Mar. nome de mulher.
escrito por alberto serra a 23.11.06
22/11/06
manual de viagem
não li. mas contaram-me. havia um manual. que os viajantes acorrentavam à mochila.
bússula de cartão amarelecido.
para os que à hora da trasfega. se cansam. de tanta lonjura. e romanceiam pelos arredores do mundo. o que deixaram a transbordar. no longínquo depósito. onde a saudade fica a estrebuchar.
pode ser. meu amor. que pela corrente do índico. um velho relógio. chegue a tempo. para retardar. o ímpeto cego.
lágrima. que embarca sem visto de residência.
(fotografia de graça)
escrito por alberto serra a 22.11.06
da ausência
às vezes. as palavras aguardam na eira. um sol brusco. ou o sopro de engenhosas mãos. as palavras pedem: quero amadurecer por dentro dos significados. e recusam-se a sair à rua. encolhem-se na manta. metem folga. esperam o sereno dilúvio. o vento que do sangue expulsa frases combustíveis. as palavras. mesmo cansadas. de tanta fadiga feliz. não suportam o escuro. e socorrem-se de velhas palavras amigas. e sangram o vermelho adiado. e vêem à boca de cena. e beijam. porque as palavras. só mostram o seu nervo. a sua voz. porque há uma mão feiticeira. que para elas inventa. um alpendre de cores. porque as palavras. são os frutos dessa feiticeira.
*
(fotografia de sweetcharade)
escrito por alberto serra a 22.11.06
21/11/06
o animal moribundo
A grande partida biológica que nos pregam é que nos tornamos íntimos
antes de sabermos alguma coisa
acerca da outra pessoa...
in O Animal Moribundo
de Philip Roth
edição Dom Quixote
escrito por alberto serra a 21.11.06
20/11/06
anjo camponês
estava a um metro de distância. fixou o olhar. e. com desvelos de engomadeira. passou a ferro o impulso. ele. encerrou a tentação nos joelhos cruzados. estendeu a mão à chuva. disse: agora que as nossas orações. são mais que piedosos juramentos. façamos do palmo de couro que nos separa. um altar pagão. uma divisória de bambú. que caia. um anjo camponês. e. entre nós. apronte uma horta. onde o amor. seja regulado pelo labor das estações. ela. imóvel. apenas concedia ao cabelo. um passeio matinal. pelas sobrancelhas. a chuva. o frio. o silêncio enganchado. em cada frase. pediam que se aproximassem. ele. ainda arriscou. ergueu um braço. os dedos a caminhar. pé. ante pé. só que. havia um juiz na sala. o anjo camponês. que sentenciou: deixem o sangue amainar. e a chuva. amolecer os liquenes. chegará o dia. da bonança. sol cavado. entre a vossa. nudez.
*
(fotografia de luís lobo henriques)
escrito por alberto serra a 20.11.06
19/11/06
primeira namorada
jsvwuyfvck-v i2fqkjhhf. foi este o resultado. letras disparadas. ao acaso. num súbito ataque de nostagia. da tecla cantante. a velhinha máquina de escrever. meia emperrada. ventre descoberto. leque de metal. reclinado. fez-me a vontade: dedos a correr. pelo alfabeto AZERT. as teclas a ribombar. aquelas letras embutidas na página. aquela banda sonora. escrever-te. assim. à antiga. o asséptico. o silencioso. o obediente. o veloz. o previsível computador. está desligado. hoje. escrevo-te com letras de ferrugem. tinta a escorrer. em alças de ferro. é para que saibas. este corpo rijo. adelgaçado. nas ancas. os acentos. em voo circular. múltiplos abraços. foi a minha primeira namorada. dócil às vezes. caprichosa muitas. mas nunca craxou. nunca me deixou ficar mal. mesmo no instante mais febril. quando calcava a tecla A. de amor. delete algum. apagava o beijo apressado. no papel. linguado. chamava-se. a cada folha. saciada. de parágrafos. firmes e elegantes. como o teu corpo. que não posso tocar. mas que podia. ser. agora. o rolo macio. onde acariciei. muitas cartas. como esta. que iniciei. na velhinha. máquina de escrever.
*
(fotografia de carlos neto)
escrito por alberto serra a 19.11.06
18/11/06
caderno de sobras
há lume apagado em tudo o que escreves. e. no entanto. em certas noites frias. procuras. no caderno de sobras. o traço envelhecido. das muitas viagens. que nunca descolaram do esboço. há. sim. tímidos parágrafos. frases incolores. pensamentos escoltados. escreves medos. em letras minúsculas. porque. o vocabulário do desejo. é vasto. impronunciável. e os teus seios. acantonados. entre parêntesis. estão guardados. para o orgasmo. maiúsculo.
*
(fotografias de autor desconhecido)
escrito por alberto serra a 18.11.06
17/11/06
nasce agora
*
(quadro de chagall)
escrito por alberto serra a 17.11.06
15/11/06
fogo atiçado
a chuva
que dizes ser cega
impiedosa.
nada é
comparada
com o vendaval de meteoritos.
que me fulmina.
sempre
que passeias o olhar.
pela vidraça do café.
o empregado recolheu
cinco lágrimas tuas.
com artes de garimpeiro.
a partir daí.
descobri a cura
para minha encoberta cegueira.
vaguear de olhar raso.
(olhos no chão digo)
sempre que entrares.
ver-me parado
na tua retina
não é um acto de resistência
mas uma queda estrondosa
num poço de astros imortais.
teus olhos
fogo atiçado pela chuva.
(quadro de klimt)
escrito por alberto serra a 15.11.06
contas saldadas
(fotografia de joão parassu)
escrito por alberto serra a 15.11.06
14/11/06
rapto
moro aqui. no arco sombrio. da submissa página. monólogo arrastado. palavras exangues. fontes caladas. moro aqui. nesta fortaleza arruinada. olhos encastrados. entre o zumbido das vespas. e muitas cartas sem resposta. moro aqui. meu amor. nesta trincheira branca. fria. distante. imaginando. como podes tu. transpor o muro alto dos vocábulos. se já não existe. a janela. por onde tantas vezes. as tuas lágrimas escorriam. pedindo mais que um poema. moro aqui. emboscado. tentando salvar. uns remendos de saudade. às escuras. as mãos cansam. os olhos pesam. os joelhos vacilam. e mesmo. que eu quizesse gritar. tu já não me podes. acudir. as portas estão soldadas. brecha nenhuma. permitirá um beijo clandestino. um rosto anónimo. uma carícia expatriada. não me leias. meu amor. espera-me. na paragem do autocarro e rapta-me.
*
(quadro de salvador dali)
escrito por alberto serra a 14.11.06
13/11/06
ofício de lua branca
tanta noite agrafada ao instinto
tanta dor segregada no tinto
tanto olhar parado no quinto.
por este andar
tantos os dias
tantas as horas
dementes melodias.
ofício de lua branca
cinzela vida no corpo
apara o deserto da estampa.
varre os despojos da campa.
anda.
dorme comigo na manta.
(fotografia de augusto peixoto)
escrito por alberto serra a 13.11.06
12/11/06
a única excepção
se me abandonares por qualquer outro homem será duro admiti-lo, mas lá terei de
me resignar, aceitarei serenamente
a tua decisão. Eu não sou rancoroso.
se me abandonares por amor a alguma
região distante, é provável que me exalte,
que perca a cabeça; embora depois reconheça
que tens razão. Eu não sou rancoroso.
se me abandonares porque estás farta de mim, talvez me doa por dentro, na minha alma.
mas acabarei por superá-lo.
és livre. E eu não sou rancoroso.
mas escuta-me bem. Se me abandonares
por um vício como a Poesia
- esse outro mundo: estranho labirinto-
morreria depois de te ter matado.
(poema de Toni Montesinos, traduzido por Manuel de Freitas.
revista Telhados de Vidro, novembro 2005)
(quadro de canau espadinha)
escrito por alberto serra a 12.11.06
11/11/06
enfarte literário
*
(quadro "biblioteca" de helena vieira da silva)
escrito por alberto serra a 11.11.06
08/11/06
citação, Ruben A
"dos 40 aos 50 limpa-se a casa, põem-se telhas onde faltam, instala-se um novo sistema sentimental e no jardim das delícias, no passeio depois do jantar, nas madrugadas sem Deus, ouvimos uma voz que nos buzina, que dali para a frente a contagem é outra..."
Ruben A
(quadro de cargaleiro)
escrito por alberto serra a 8.11.06
07/11/06
06/11/06
pensa
na divisória de granizo
onde a chuva
amolece a fúria
pensa
nas folhas de outono
que suturam
calçadas feridas
pensa
no colapso das máquinas
pensa
no que te digo:
gosto do negro em ti.
pensa
no que me dizes:
gosto do teu sabor a vício.
mas tenho medo
de perder o endereço do amor.
pensa num instante parado
entra em mim
olhos brancos
água de lavanda
pensa
no foragido desejo
dinamitado pelo beijo.
pensa pensa
a minha cama
é uma praça escura
meus seios
candeeiros azuis
só tuas mãos
ladinas
sabem acender
o resto do meu corpo.
pensa.
(quadro de salvador dali)
escrito por alberto serra a 6.11.06