31/08/06

carta de verão




o verão gasta-se meu amor. e ainda não cumprimos o que gizamos na areia. escrevo-te de uma rocha abandonada pelo mar. pedaço inóspito. de conchas engastadas. ou serão lapas? unhas negras ferem a pedra. outrora preenhe de algas. sargaço. a rocha era uma árvore. agora sento-me num talude de relva seca. o pescador olha o oceano. estão a ver lá ao fundo. aqueles carneirinhos brancos a cavalo nas ondas? vem aí nortada. pela certa. o verão gasta-se meu amor. e nós. não tarda. seremos ameias afogadas num castelo sem defesas. na praia. há ainda restos. de muitas pegadas. tantas caminhadas. pequenos lagos que as noites cavaram. abrigos de amantes foragidos. o verão gasta-se meu amor. a nortada levanta ferros. besunta a pele. areia. sal. o lixo dos emigrantes. é tudo pegajoso. erosão. não era bem isso. o que tinhamos planeado. lábios salgados sim. mas de água e suor. e vento leve. uma túnica. tudo começou. lembras-te. naquela tarde. dedos a correr pela areia. em círculos. mapa dos nossos encontros. desenhado no escaldante tapete de areia fina. escreveste um verso de drummond. "o chão é a cama do amor urgente". foi aí. que tudo se revelou. combinamos. fechar as casas. trancar janelas. algemar portas. e fugir. cães vadios em veredas de luar. celebrar o estio em contramão. não voltar à cama. fazer tábua rasa. dos actos repetidos. a xis horas. vestimos o pijama. fazemos amor. amar. amar. sim. mas. em horas irregulares. corpo a corpo. no ultravioleta máximo. erva escrava dos esticões. dos espasmos. bendita fúria. e na barraca listada de azul. à meia note. dentro de ti. cova de areia molhada. a lona estremece. as traves guincham. e tu. uma corrida até ao extremo do pontão. na hora da telenovela. saias levantadas. o vento maritímo. a farejar-te. as coxas. o pescoço. mamilos arrepiados. perna levemente alçada. costas arranhadas. pelo cordame. gritos ecoam no oceano. travar a fundo. na estrada. o caos do trânsito. esfregamo-nos. no capot. até ao verde do semáforo. último estremeção. não finda. desejo castigado. que bom! até novo cruzamento. o verão gasta-se meu amor. e agora? adiamos tudo. para o armazém do inverno?

29/08/06

noivado


inspirado "Em noite de Luar"
de Raúl Brandão



porque me dói um amor antigo estou noiva do luar. era escusado. sabes como as tuas cartas forravam a arca do enxoval. as traças nem se atreviam. entre nós o dia e a noite eram um só
tronco. o céu um remendo de azul. o luar um contorno vago. o luar mesmo dardejava nos pulsos. nunca havia escuridão. depois. depois. as tuas palavras abandonaram-me. as tuas mãos emigraram. e o espelho já não suporta o meu rosto. a noite é um punhal. sendo assim. vou de núpcias com a lenda. "para a lua vão todos os amantes".


*

(fotografia de mel gama)

puzzle



um rosto
de três faces
degraus
aveludados
entre o queixo
e os lábios.
até ao limite
da fronte
o caminho é longo.
moldar o grito
enxugar a lágrima
banir o pó
de um chão
sem rugas.






(fotografia de carlos teixeira)

28/08/06

desidrato



é creme ou água o que o corpo derrama
quando as palavras já não socorrem
os que de bruços nadam
aflitos
em lagoas de pano?




(fotografia de jacek pomykalski)

pôr do verão



leva o poema com as mãos em chamas e deposita-o num cume de luz. sobe lentamente o meu peito. semeia uma letra que seja. um princípio de tempestade. bebe-me como se cada ponto não fosse suficiente para te matar a sede. acorda a cabeleira em fogo da queda d´água. lava-me por dentro. os meus lábios correm aflitos pelos espaços em branco. diz-me que a resposta é uma longa prece. seios em mim. estalido de pele. gritos abraços beijos joelhos colados à relva molhada. diz-me que a chuva de verão cai para te mordiscar o lóbulo. manda-me o teu corpo coberto de folhas. o cheiro da chuva em terra seca. guia-me pelo primeiro fio de orvalho que tomba na rosa. depressa antes que os meus braços sejam derrotados.


*

(quadro de van gogh)

ave rara



há um lugar na praça
onde o sol todo se concentra.

dedo de prata
no pano cru do chapéu.
não uso rimel.não me pinto.
e no entanto dizes tu
este chapéu
é a toda a maquilhagem.
traço de aba castanha
para não passar
despercebida.
quando nos despedimos
o tímido gesto
de colocares o chapéu
faz toda a diferença.
olhas-me como se visses
nos meus olhos
o espelho do camarim.
dás um passo em direcção
ao beijo
e és uma actriz
em dia de estreia.
a sombra que por um instante
treme no teu rosto
expulsa a luz da tarde.
vens à boca de cena
os olhos mudam de cor.
o sorriso muda de margem
as mãos
segregam todo
o ar.
regressarei
um dia.
sem tu saberes.
para assistir à coroação
da princesa
de abas castanhas.
e então sim.
já posso abandonar a praça
no fim do primeiro
acto.




(fotografia de autor desconhecido)

27/08/06

memória



prometemos. um ao outro.
seguir uma voz
que fale de um mundo
por descobrir
no declínio do verão.
uma voz.
em diálogo mudo com as dunas.
um céu esmaltado.
tu com os astros no olhar.
eu com o vento nos cabelos.
prometemos. lembras-te?
impedir que o mar
na faina de setembro apague.
um palmo.o nosso.
de areia salgada.
o lento debulhar
da polpa.




(fotografia de nandor lang)

26/08/06

ganda ressaca



é como engolir borras de café frio. gritou-lhe logo de manhã. ele ainda ressonava. ela salivava os últimos dissabores de uma noite de sexo a mil. pensas que isto de a gente se entregar é como jogar playsation? que um orgasmo é um vê se te avias que se faz tarde? montas-me ainda a cheirares a não sei quantos shots. as calças pelos joelhos. a camisa amorratada de tanto te esfregares no balcão com a tanga do costume. vamos para minha casa. fazer sexo é fixe. e apalpas-me. beijas-me e nem me tocas a língua. nem me sabes despir. não me pesquisas. é tudo aos encontrões. ainda ontem me enviste um sms tão bonito. eu logo vi que o foste roubar à net. senão hoje dizias quem é o autor. esse gel é horrível. com o sol a bater na pele descobre-se que a noite é um alçapão. luz travestida. um carroussel de enganos. túnel de engates sumários. eu que gosto tanto de falar. de ouvir palavras misteriosas que não entendo. de segredos ao ouvido. de mãos hesitantes. aquele vai não vai. sim. e tu já devias calcular. também gosto de livros. e só me falas do paulo coelho. quinze minutos. ou será o dez segundos. e riste. é o tempo médio da duração de um orgasmo. e não páras de gargalhar. dizes-me que conheces uns sites bués de fixe. gajas que põem fotos contam duas larachas. mostram o fio dental. dizem que já tiveram na televisão a fazer figura de corpo presente. é tudo quanto tens para me dizeres. não me contas uma história. quase não me falas de ti. sonhas ainda? sabes o que é namorar? ainda há dias a minha mãe me perguntava a medo. alguma vez saboreaste uma boa marmelada? encolhi os ombros. eu que nem gosto de marmelada. fui ao dicionário. marmelar. barrar a pele. de cima a baixo. devagar. língua doce. de poro em poro. como uma palhinha. sabes quantos sinais tenho no corpo? ele ainda meio azambuado. ganda ressaca. meias palavras. és uma seca. antes de bater com a porta. depois de uma cuspidela. ela virou-se. nunca mais tocas nestes marmelos.


*

(quadro de basquiat)

25/08/06

pele



a esta distãncia não sei
medir o efeito.
anoiteceres em mim
no extremo da falésia.
roçar as pálpebras
ferir os dedos
na rocha muda.
cobrir-te
de vagabundos arrepios
agora que setembro
já se anuncia
na aragem.
ao largo
de baías assombradas
a maresia
devolve o teu
cheiro a baunilha
(ou será a aloé?)



(quadro de edgar degas)

24/08/06

ladrão de lápis



já dormiu com ele em residenciais. hoteis. três quatro cinco estrelas. e nunca o viu a esconder nada na mala de viagem. toalhas. roupões. chinelos . toucas. shampoos. sabonetes desses que não escasseiam em quartos de hotel. mas as cartas que chegavam no dia seguinte a cada encontro eram quase sempre ilegíveis. letra escangalhada em magras folhas arrancadas de blocos com logotipo de hotel. cartas rabiscadas a lápis de carvão. insignificantes pedaços de papel amachucados. muitas notas. sublinhados. negros esboços nas margens. duas ou três frases perdidas num pequeno caos formato a12 que a deixavam perplexa. até que num regresso apressado de mais uma pernoita ela reparou no olhar voraz. mãos predadoras embolsando blocos e lápis do hotel. mas ele não lhe deu tempo. roubo. é verdade. blocos e lápis de todos os hotéis em que nos entregamos sem tempo marcado. sem pudor. e em cada bloco anoto tons de pele. a melodia dos abraços . bloco e lápis. maestro e batuta. a orquestração do desejo. das carícias. gritos bruscos. irrepetíveis. e tantos os esquissos guardados. tantas as manchas nessas maltrapilhas folhas. para quê? parece-te improvável. eu sei. ando a coleccionar cópias de todas as cartas de hotel que te envio. e sabes porquê? para que um dia recebas em encomenda lacrada a partitura. banda sonora do teu clímax.
percebes agora porque troco um. dois blocos. dois. três lápis. por todos os roupões de hotel?

*

(quadro de jackson pollock)

23/08/06

toca-me




compassivas mãos
folhear a tarde
até à milésima página.
o harmónio de um sorriso
onde estender a roupa.
ou os teus cabelos
parêntesis curvo
do beijo.
compassivas mãos
amaciar arestas
de sombra
medir a inclinação
dos telhados
o arcaboiço dos navios
ou o teu gostar
sem aviso de recepção
no cacifo dos amantes.



(fotografia de margarida araújo)

22/08/06

senhorinha

senhorinha da silva custódio. senhorinha. está apresentada. quem é baptizado com um nome destes merecia melhor sorte. senhorinha. cruel diminutivo para quem nunca foi dama senhora menina debutante em salões de lustres. donzela de ouropel. madamezinha criada em alcova de ouro. senhora coquete vestidos de chita luvas de pelica. senhorinha é nome de mulher que nunca logrou honrar o nome. nasceu aos trambolhões. aos quatro perdeu a mãe e ficou com a irmã. porrada. aos vinte juntou-se. a um alcoólico. porrada. murros e pontapés. cabeça contra a parede. altas horas da noite. e ela sem dormir. porrada e mais porrada. música aos berros. a cabeça a estoirar. o filho esfaqueado à cabeceira. ela. um trapo atirado ao lixo. sempre a fugir. nervos destrambelhados. arrasta-se até ao Conde Ferreira. sempre a fugir senhor doutor. recorda-se de algum momento alegre? tudo negro senhor doutor. sempre a fugir. o companheiro finou-se. a família deixou-a. sempre a fugir. e a vizinhança a cochichar: lá vai a louca.encerra-se no quarto minúsculo. quer dormir até morrer. e nunca corta os pulsos. esgadanha-se pelas paredes. cobre-se de frio. e não ingere barbitúricos. se morrer que seja de olhos bem abertos. a cabeça a zumbir. e não dorme. quer atravessar a passadeira. cai. de novo no hospital. senhor doutor estou a enlouquecer. sempre a fugir. só porrada. dê-me alguma coisa. não quero morrer assim. tratamentos. volta carregada de comprimidos. e não se mata. prefere esganar o mal alojado no cérebro. a reforma de mulher a dias some-se na farmácia. mata a fome com migalhas. não dorme. vive aparafusada à solidão extrema. um dia. um dia. um grupo de jovens que faz rondas para combater a solidão entra na casa da senhorinha. chovia lá dentro. barraco apagado no fim da ilha. no porto. aqui tão perto. foi sempre a fugir meninos. quer ajuda senhorinha? só se for carinho. companhia. o resto cá me arranjo. estou a seguir a medicação à risca. sentem-se. os jovens consertam-lhe o casebre. flores pintadas nas paredes. ela. a senhorinha. sempre asseada. cabelo ralo de menino. à espera da ronda semanal. são os meus filhos. os meus meninos. mãos agarradas. trevo de mimos a germinar. abre um sorriso. ainda tem lágrimas para chorar num rosto de senhorinha. e uma certa comoção pequeno burguesa apodera-se de mim. passe para cá o seu bilhete de identidade. a partir de hoje chama-se A Grande Senhora da Silva Custódio. a senhorinha na soleira da porta. um fio de candeia a tremer no fundo dos olhos. diz: os meus meninos já me levaram a ver o pôr do sol. o primeiro da minha vida. só tenho cinquenta e seis anos. talvez um dia ainda vá a um bailarico.

20/08/06

terra sem mal



voltarei à terra sem mal.
ressuscitar à sombra de uma acácia
enfartar-me de infinito
no céu abundante.
descer pela encosta de uma pálpebra.
pousar uma lágrima
no vaso da infância.
voltarei.
sem máscara de amianto
para me defender
dos sinos de fogo.
sem véus nem espadas
para enfrentar a solidão.
terra sem mal
andas comigo
num verso inacabado.
o poema só termina
no dia
em que acordar
a teu lado.




(quadro de paul gauguin)

19/08/06

azul de alças




não há como um prelúdio de azul.
a incerta hora azul envolta em antigas lendas.
e um azul de alças?
na primeira demão o olhar
resvala.
do azul ao baixo relevo dos seios.
está pronto o quadro .
maria vai com as outras.
cá me fico.
a escorrer azul.








(fotografia de patrick wecksten)

18/08/06

tempos



sim. o tempo é masculino. hora veloz a metralhar nos telhados. na mulher a contagem é outra. uma trégua. chuva miúda em pele de alabastro. ela sabe que os amores de verão são uma existência míope. espera. sabe que um dia também ela sentirá o ranger do arado nas arestas do corpo. ronda. tempestade que se esconde atrás das árvores. dá espaço. enxuga o desejo em panos de velas extraviadas. o tempo do homem habita num cego furacão. queima intervalos. evita os atalhos. ela. a mulher. pelo contrário. adora trilhos. caminhos quase. o sereno que chega da orla. cita o poeta: a ternura é húmida. e diz mais. a mulher. se a ternura não fosse húmida os rios não eram rios. as lágrimas dos amantes já não corriam para a foz. as bocas oxidavam.

*

(quadro de salvador dali)

17/08/06

o lamento dos muros




fotografias de Paula Luttringer na Cadeia da Relação do Porto. Lugares de prisões clandestinas onde dezenas de mulheres foram torturadas no tempo da ditadura argentina nos anos setenta. escrever com base em testemunhos dessas mulheres.


o muro guarda um grito
ausente
o lamento abafado
de muitos rostos
mulheres sem nome
corpos de embrulho
olhos razurados
no medo subterrâneo.


não havia algodão
não havia trapos.
no período menstrual
diziam-nos: vocês são
como as cadelas.
escorrem sangue
pelos caminhos.


quero sentir uma caricía
como carícia
e não como manuseamento.
despir-me eu que sou uma
católica praticante
dói mais que as dores físicas.
na primeira nudez senti
uma vergonha aterradora
só ultrapassada
pela tortura.
pela violação.
nunca mais voltei
a ter relações sexuais.
acabou ali a minha
condição de mulher.


não me sinto tão
só.
passam formigas
por aqui.


tenho chagas
no corpo.
como hei-de
responder ao meu filho?


é muito dificil
descrever
o horror
dos segundos.

sereia




se fosses mar aqui.
inútil
saber a tua morada.
um risco de água
a marcar a página
é tudo.
ler-te
ao leme
de um vento liso.
agora que alcancei a outra margem
e juntos dobramos a noite
peço-te que embarques
em letra redonda
sejas mar aqui





(fotografia de patrick wecksten)

15/08/06

dor de deus


não conheço esse deus
que se perfila no leito
armado de lenços
e punhos de renda
será o rascunho
do deus
que pressentimos
no cheiro de velhas cartas?
um deus antigo
que escreve a carvão
a dor abandonada.
dor esquecida
num fio de cabelo.
dor que se desfaz

às mãos do sol.





(fotografia de le borgne)

anjo bravo



a face encharcada de luar. um fio de néon à roda do pescoço. enxame de olhos a zumbir na mata escura. cheira a gengibre e a borras de café. o corpo estirado no chão nocturno prende-me às raízes. indiferente ao latir dos cães ou à cilada das cobras o grito domestica o medo. entra meia desvairada a boca. por caminhos vedados. sei que és tu. por onde passas deixas pegadas brancas. pelo rastejar dos dedos. sei que és tu. pelo chamamento da erva suada. pelo relevo dos seios. dunas rijas. a dança do umbigo. o duelo das ancas. cabelo escudeiro. língua desembainhada. sei que és tu. corpo invencível.

*

(fotografia de augusto peixoto)

13/08/06

água humana



o mar
na sua longa meditação
nocturna
lança roucos gemidos
pela garganta dos rochedos.
ninguém chora
águas magoadas
niguém repara
que na cova das ondas
chegam proas de salitre.
nesta ponta do oceano
há um altar nú.
uma noite de amor
bocas ajoelhadas
oração de sal
niguém repara.
o rasto que se desvenda
à hora da vazante
só ao mar
diz respeito.




(fotografia de paulo sousa)

segredo




luz nenhuma
ilumina como o teu tacto:
a prece nocturna

de uma ave
um sinal

oculto
no corpo.






(desenho de picasso)

11/08/06

assim me aconteces


a poesia meu amor é uma velha tirana
pobres de nós que nos fixamos numa nuvem
à espera que o céu desate o nó do poema
e por um instante (ilusório)
até nos sentimos coroados de inspiração
puro engano.
a poesia está em ti
que não és verso obrigatório
nem um colapso divino
digamos que és chão e paraíso
numa mesma pessoa
e a forma como te esfregas nas palavras
torna a tua pele num raro manuscrito.
quando me perguntas em carta fechada
se eu quero voz ou carne
respondo-te com uma inexplicável sede de absoluto
quero parcelas mínimas da tua carne macia
seremos
corpos fundidos
numa oficina de escrita




(fotografia de paulo evangelista)

10/08/06

opacidade


depois de reler
o "anjo ancorado"
de José Cardoso Pires


asa tenra asa tenra
recorte de meia lua
que procuras
a esta hora tardia
num sentimental
à beira da reforma?
o faro de um perdigueiro batido
a tatuagem num tronco viril
ou uma amostra de renda
entre as rugas?



(fotografia de ana meireles)

09/08/06

dor perene




não saber
dia e hora
em que o teu corpo esgana
o silêncio
não sentir
o revelo
do sangue.

braços à deriva
sem corpo para navegar
sem olhos para os guiar

onde estão as
amarras do teu porto?
naufrago na lembrança
para não morrer
nas águas vencidas.

amanhâ começa numa
pegada de fumo
marco descoberto
pela cegueira do
anónimo viajante




(fotografia de dionísio leitão)

agosto



agosto
a cidade é uma guarita de pó
cães orfãos
ladram à solidão

agosto
árvores cansadas
carregam
sombras
na aba vegetal

agosto
amantes
ganem
ao luar
corpos desmantelados
sem morada certa.
agosto
o teu gosto
praia selvavem
agosto
minhas mãos avançam
incontroláveis
fogo posto
em ti.





(quadro de paul gauguin)

08/08/06

revelação





A ARTE DO DISFARCE
É UMA NOITE SEM LUAR
UM PALMO DE MAR
AMORTALHADO
EM LÁBIOS DE FERRUGEM.
CEDO FICAMOS ORFÃOS
DAQUELE PRIMEIRO ABRAÇO
EM QUE ARRISCAMOS

O ESBOÇO DO DESEJO
NUM VASO DE ORQUÍDEAS
ANTES DA SOMBRA
NOMEAR O ROSTO








(fotografia de marlene dumas)

uma mulher



conheci uma mulher que aparava limalhas de azul à luz moribunda do poente. colado à pele trazia um extenso cordão de espuma. não a espuma inútil da baínha do mar. não a espuma com que o pudor veste o medo.na verdade não era bem espuma. mas um um afluente de suor lácteo. uma mulher cujo corpo bramia na palma de um vento macio. um cantâro de àgua que apetecia levar a todas as esplanadas. uma mulher que cheirava a tílias quando no tronco da noite a pele estala em beijos insaciáveis como as altas noites de verão. uma mulher fiel ao prazer cego.uma mulher sentada no seu próprio sexo. na boca dessa mulher a glande é um fruto que amadurece numa longa tarde de pastoreio. a língua dessa mulher é um pedaço de céu rosa que desce pelas paredes nuas do quarto pronta a desvendar os virgens enclaves de um corpo navegável. gostava de morrer entre as pernas dessa mulher. beber-lhe o suco até ao último degrau da fusão.

*

(fotografia de greta garbo)

07/08/06

manhã


manhã indecorosa
que chega em transe
queimando o hálito branco
dos teus olhos.
manhã ladra
arromba portadas e janelas
rouba o verde das jarras
o ar do pátio.
manhã escrava
de peles desavindas.
puta de manhã
em fogo cruzado
sobre alcovas inocentes.
manhã púdica
que veda o acesso
à rosa do vestido
odor marítimo
do sol orvalhado.
com uma manhã
assim assanhada
já nem os olhos
podem velar em sossego
o altar
em profana oração.



(desenho de picasso)

05/08/06

peitoril



Onde está a lua perguntavas com os olhos debruçados
As mãos à procura de um modo nocturno
De vazar todas as palavras
No corpo de argila.
Sentada no peitoril
A cidadela ao fundo
Vago clarão desvelando
A pele do cio.
Comecei a folhear-te.
Assim a nudez pudesse contar
O que a flor carnívora dos meus lábios
ia escrevendo nas tuas coxas
até se fixar num parágrafo de gema.
vulva lisa
que se abre lentamente como um livro raro.
A página tantas
a concha em tinta permanente
já não pedia só que a circunscrevesse
com frases incompletas
Queria todo o meu volume.





(fotografia de aneta badziag)

04/08/06

crepúsculo


que fazer
a tanta solidão acamada
noites e noites
lua cor de mel a ensaboar
a vidraça?
no beliche
guardo piedosas linhas
meia dúzia de versos
cariados de lágrimas
a suplicar-te a mão
os seios
a amêndoa
brevevemente assinalada.
mas que pode a baba
do poema
contra o defunto
entardecer?
nada.
mal o sol se ponha
ponho-me em ti



(fotografia de pedro conceição)

03/08/06

inside



ver sim
mas por dento.
fora a paisagem é ilusória
o corpo um deserto de cardos.

vitais e macios os orgãos
que pulsam por dentro.
coração no ovário
fértil o espasmo
que sentes na polpa.

dentro
um caleidoscópio
espelhos de artérias
veias bombeando

tu à porta
abrindo a rósea fenda
eu
arqueólogo
corpo fundido
numa flor
a cuspir.

entrar
enterrar-me em ti
oleando a visceral
cópula dos tecidos.

por dentro
a paisagem é outra.
acredita.
cordão agarrado umbilicalmente
à chama inextinguivel

a entrar
que seja agora
antes que o fogo lá fora
extinga o vulcão da pele interior.





(fotografia de patrick wecksten)

02/08/06

tentação



bronze a latir na pele
a tua língua
serpente insubmissa
que fareja todos os esconderijos.
língua artesã
que modela
gomos de saliva
no galho empinado.
língua insaciável
em lábios de esponja
bebe o último coágulo branco.
artes de antiga
lavadeira
a tua língua
enxuta-me.
membro a corar
ao sol da meia noite.


(na foto: natasha kinski)

01/08/06

dá-me lume



quero caminhar descalço
deslizar sobre
um lençol de águas
cerzido na pele.
caminha a meu lado
mãos enrodilhadas
em sal e mar.
somos cordões desatados
sapatos de feno
à mercê
do primeiro rastilho.





(fotografia de ana russo)

diálogo de sombras



a existir
que seja uma sombra branca
no escuro
línguas profanas
num istmo de cuspe.
Corpos emboscados
na divina cavidade
Embulo desalmado
resvala pela escarpa

erva flagelada
embriaguês e dilúvio
ombros em duelo
olhos de fonte


linha de águas licorosas
bocas simétricas
escalando clítoris e glande
até que a morte chegue
em plena ressurreição


(fotografia de morris)

amanhecer



eis-me de poros rasos
palavras a levedar na canícula
a batalha do amor trava-se
em campos cercados
para que nenhum olhar
dê tréguas à peleja
de vigia ficam os olhos
lentes embaciadas
apressado resfolgar




(quadro de velazques)

inquietude



perdoa o meu silêncio
rio circunscrito
pelo branco apagado da ausência

este escombro
que escala o dia
caminho arenoso
onde o recorte da lua não chega.

perdoa o gesto cobarde
de te provar no deserto da noite
e não te chamar

os lábios calcinados
a pele emigrada
a voz submersa

só não perdoa esta
voragem no olhar
que te procura como um dardo
ávido.


(quadro de cézanne)

anunciação


chego das margens da escuridão
besuntado de silêncio ervas e resina
o meu corpo há muito que pede
a explosão do verbo
na branca página da espera
escrevo-te porque não há
outra forma de falar
com os teus olhos
a minha sede é tão antiga
como a fome das palavras
um dia virás
pela correnteza do alfabeto
descobrir outros sinónimos.
espero-te
no húmus da letra.





(quadro de chagall)

levo-te ao azul



de partida para um lugar com telhados de silêncio
levo-te para não morrer nos braços exaustos do vazio
vais comigo com a tua mão desconhecida
a pontuar cada segundo de saudade
levo-te como se transportasse um segundo coração
oxigenado pelo que há-de vir
um fato de mergulhador
para tocar a mais secreta estrela do mar
cingida por algas
levo-te porque nenhuma palavra pode encher
este vaso de sol que desponta
em cada palavra tua
levo-te às cavalitas do sonho
na adolescente foueira
onde ardem todas as sebes
todos os limites
levo-te em contramão
para transgredir docemente
as estradas e ruas e caminhos
os desejos de sentido único
levo-te simplesmente porque
tu és o meu farol que varre
todos os poros interditos
uma vela ao rubro
na mais fechada escuridão
levo-te no verso inacabado
porque o poema só
termina
quando acordares a meu lado




(fotografia de manfrad shneider)

tatuagem


vieste silenciosa pela margem da fala e o sorriso conversou.
o teu sorriso
entidade divina
que nomeia o rosto
melodias na surda neblina ou na lágrima extrema.
abençoo-te por chegares anónima à página em branco onde se escreve a medo o primeiro arfar.
a palavra ama o teu olhar de sombra tombada num fio de orvalho
aloja-me no segundo coração
lugar velado
por um só verso
tule de sonhos.





(fotografia de alice)